Avanço Genômico do Mês
O estudo de doenças genéticas muitas vezes fica centrado no genoma nuclear humano – o código linear expandido com cerca de 3,2 bilhões de nucleotídeos e mais de 24 mil genes distribuídos em nossos 46 cromossomos. Em contraste, o outro genoma que reside dentro de nós, o genoma mitocondrial, tem recebido menos atenção. Embora nosso genoma supere o mitocondrial em tamanho – um genoma curto, circular com pouco mais de 16.000 nucleotídeos e exatamente 37 genes – o pequeno (mas poderoso) genoma mitocondrial é sem dúvida muito importante.
Ao contrário do genoma nuclear – onde cada célula tem apenas uma cópia completa – no genoma mitocondrial pode haver dezenas, centenas ou milhares de mitocôndrias por célula. Uma vez que cada mitocôndria tem em média cinco genomas mitocondriais completos, é possível, teoricamente, que hajam dezenas, centenas ou milhares de genomas mitocondriais por célula. Novos estudos que sequenciam genomas inteiros também sequenciaram os nossos genomas mitocondriais, dando aos cientistas uma visão mais detalhada sobre a natureza das doenças associadas com mutações mitocondriais.
As mitocôndrias – muitas vezes referidas como as “usinas da células” – são complexas. Elas não só criam energia na forma da sempre presente molécula de trifosfato de adenosina (ATP) usada para muitas das ações celulares, como também abrigam genes para o ribossomo, que constrói as proteínas, assim como os genes de RNA de transferência (tRNA) e fornece uma espécie de sistema de fechadura e chave que ajuda a decifrar o código genético para o código proteína aminoácido.
Desta forma, as mitocôndrias mantém cada célula em intensa atividade (inundadas de ATP) e construindo proteínas (com um suprimento constante de chaves tRNA). Se uma mutação afeta qualquer destes genes, uma pessoa pode ter uma doença mitocondrial variando de miopatia ou epilepsia, desordens complexas, incluindo a diabetes de tipo 2, câncer, envelhecimento prematuro e doenças neurodegenerativas. A palavra “pode” é o fator complicador aqui.
Quando existe uma mutação no genoma mitocondrial, pode ser apenas uma mitocôndria na célula, ou a mitocôndria pode ter muitas cópias exatas, de modo que a mesma mutação é observada em algumas ou a maioria das mitocôndrias da célula ou da pessoa. Isto é conhecido como heteroplasmia – o foco do Avanço Genômico de julho de 2014.
Embora pareça estranho, a heteroplasmia é algo que ocorre na grande maioria das pessoas – talvez numa taxa tão alta quanto 90 a 100 por cento. Mas a prevalência exata, embora academicamente interessante, não diz aos cientistas como o corpo lida com essas mutações mitocondriais ou informa aos profissionais de saúde os níveis em que as pessoas podem começar a sofrer de uma doença mitocondrial se abrigam mutações em seu genoma mitocondrial.
Para começar a responder a essas perguntas, um estudo na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, analisou mutações causadoras de doenças no genoma mitocondrial de pessoas saudáveis e os níveis de heteroplasmia que podem levar à manifestação de uma doença mitocondrial em uma pessoa.
Uma equipe internacional de pesquisadores baseados nos Estados Unidos e na China examinaram dados genômicos mitocondriais do Projeto 1000 Genomas, um extenso catálogo da variação genética humana de 1.085 indivíduos saudáveis de 14 populações diferentes. Depois de baixar os dados brutos, a equipe procurou os dados para as variações, observando mutações, tanto as causadoras de doenças, quanto as benignas (polimorfismos). Para analisar os dados, os pesquisadores usaram uma série de técnicas computacionais e estatísticas para descobrir mutações incomuns ou raras observadas em apenas um a 10 por cento dos genomas mitocondriais analisados.
Após a análise, eles descobriram vários resultados surpreendentes. Em primeiro lugar, eles descobriram que a heteroplasmia é bastante comum, quase 90 por cento dos indivíduos abrigavam uma ou mais heteroplasmia. Em segundo lugar, eles descobriram que cerca de sete por cento das heteroplasmias foram associadas com doenças mitocondriais, e, além disso, que uma em cada cinco pessoas carrega pelo menos uma destas mutações mitocondriais, embora a um nível muito baixo. Em terceiro lugar, a equipe observou que, se uma mutação prejudica a delicada maquinaria celular, o corpo pode ter um mecanismo para filtrar e separar a mitocôndria com a mutação prejudicial.
Investigando esse último resultado, a equipe percebeu um padrão entre as heteroplasmias prejudiciais. A proporção de mitocôndrias anormais diminuiu drasticamente quando chegaram a cerca de 60 por cento. A partir daí, eles inferiram que um nível de 60 por cento de heteroplasmias nocivos pode ser uma espécie de limite necessário antes de uma doença manifeste-se em uma pessoa e o ponto em que o corpo utiliza um método para removê-los. Infelizmente, embora o corpo parece reduzir a quantidade de heteroplasmias nocivas, o faz de uma maneira ineficiente – possivelmente devido à pequena concentração de heteroplasmias nocivas (menos de 10 por cento) que podem estar presentes no corpo da pessoa.
Este estudo foi uma descrição geral da heteroplasmia. No entanto, o estudo de heteroplasmias tem amplas implicações que incluem uma melhor compreensão do grau em que as pessoas saudáveis abrigam mutações causadoras de doenças em seus genomas mitocondriais e do limiar de heteroplasmia necessários antes de uma doença mitocondrial manifesta em uma pessoa.
Em última análise, isso poderia ajudar os pesquisadores a entender a quantidade e o tipo de mutações nas mitocôndrias, como estas podem ser herdadas e se o corpo tem um mecanismo que se protege contra heteroplasmias prejudiciais. Se assim for, os pesquisadores, no futuro, podem, eventualmente, utilizar um mecanismo para intervenção terapêutica para o tratamento das doenças ligadas ao mau funcionamento mitocondrial.
Leia o estudo:
Ye K, Lu J, Ma F, Keinan A and Gu Z. Extensive pathogenicity of mitochondrial heteroplasmy in healthy human individuals. Proc Natl Acad Sci U S A, 111(29):10654-10659. 2014. [PubMed]