Jennifer Doudna, a inventora da CRISPR-Cas9, fala sobre sua descoberta da técnica de edição de genes, da separação de sua parceira e das complexidades éticas da manipulação genética

Hannah Devlin, para o jornal The Guardian – Domingo, 2 July 2017 
Jennifer Doudna: ‘Experimentos falham. Ter pessoas ao redor com quem possamos interagir é super importante.’ Foto: Bryan Derballa/Kintzing.com

Jennifer Doudna: ‘Experimentos falham. Ter pessoas ao redor com quem possamos interagir é super importante.’ Foto: Bryan Derballa/Kintzing.com

Jennifer Doudna, 53, é uma bioquímica americana baseada na Universidade da California, em Berkeley. Em parceria com a microbiologista francesa Emmanuelle Charpentier, ela liderou a descoberta da revolucionária ferramenta de edição de genes Crispr-Cas9. A tecnologia tem o potencial de erradicar precocemente doenças incuráveis, mas também coloca questões éticas sobre possíveis consequências imprevisíveis da reedição do genoma humano.

Você era ‘nerd’ quando criança? O que fez você se engajar com a ciência?
Sim, eu era nerd. Meu pai era um professor da literatura americana no Havaí e eu amava livros. Um dia eu voltei da escola e ele tinha deixado sobre a cama uma cópia do livro The Double Helix ( A Dupla Hélice), escrito por Jim Watson. Em uma tarde chuvosa, eu li o livro e fiquei atordoada. Fiquei maravilhada com a ideia de fazer experimentos sobre a aparência de uma molécula. Eu tinha provavelmente 12 ou 13 anos de idade. Eu acho que nesse momento eu comecei a pensar “uau, seria fantástico trabalhar com isso”.
Você passou a maior parte da sua carreira descobrindo a estrutura do RNA e nunca pensou em criar uma ferramenta para ‘copiar/colar” genes humanos. Como foi que você acabou trabalhando com Crispr?
Eu acho que você pode colocar os cientistas em dois baldes. Um é o tipo que mergulha profundamente em um tópico por toda a sua carreira e sabe sobre aquilo melhor que qualquer um no mundo. Aí tem o outro balde, onde eu me coloco, onde é como se você estivesse em um buffet tipo self-service e você vê uma coisa interessante aqui e faz isso por um tempo, e isso te conecta a uma outra coisa interessante e você pega um pedacinho daquilo. Foi assim que eu cheguei ao trabalho com o Crispr – foi um projeto lateralmente associado ao que eu vinha fazendo.
Mas quando você iniciou sua colaboração com Emmanuelle Charpentier, você teve um pressentimento de que estava trabalhando em algo especial?
Nós nos encontramos em uma conferência em San Juan, Porto Rico, e fizemos um passeio pela cidade juntas. Ela estava tão apaixonada, o seu entusiasmo era contagiante. Eu me lembro que estávamos andando e ela me disse: “Eu estou realmente feliz por saber que você quer trabalhar conosco no misterioso Cas9 – a enzima que corta o DNA no local escolhido, no processo de edição”. Foi um tipo de momento eletrificante, eu senti aquele sentimento visceral de que era algo realmente muito interessante. Eu adoraria ter continuado a trabalhar com Emmanuelle. Eu não a culpo: ela teve suas razões e eu a respeito.
Quanto importante é a química pessoal na colaboração científica? 
É essencial. Trabalhar em um laboratório é semelhante a estar em uma peça de teatro escolar: você ensaia por longas horas, tem um monte de gente, e muitas coisas estressantes podem acontecer. Acontece o mesmo em ciência. As coisas nunca acontecem como você pensa, experimentos falham e portanto ter pessoas que realmente estejam ao seu lado é super importante. Muitas colaborações não funcionam, geralmente porque os interesses pessoais não estão alinhados ou as pessoas não gostam mesmo de trabalhar juntas.
O verdadeiro frenesi em torno de seu trabalho começou em 2012, quando você mostrou que a Crispr-Cas9 poderia ser usada para cortar a molécula do DNA em qualquer local que você quisesse. Você percebeu que isso seria um grande negócio de forma gradual ou imediata?
Não foi um processo gradual, foi um desses momentos “Oh Meu Deus!”, quando você olha nos olhos do seu parceiro e diz “holy moly!”. Foi uma coisa que nós não tínhamos pensado antes, mas então pudemos ver que funcionava, e que seria uma forma fantástica de edição genética.
Depois de você ter demonstrado que a Crispr poderia editar o DNA de uma bactéria, dois laboratórios rivais (Harvard e Broad Institute) fizeram a primeira edição em células humanas. Como eles puderam te derrotar?
Eles estavam absolutamente configurados para fazer esse tipo de experimento. Eles tinham todas as ferramentas, as células em cultura, tudo estava pronto para isso. Para nós, esses seriam experimentos muito difíceis de fazer porque não é o tipo de ciência que praticamos.
O Instituto Broad venceu a última rodada de uma batalha legal em curso sobre direitos de patente – eles afirmam que não era óbvio que a CRISPR poderia ser usada para editar células humanas também. Onde você fica nesse contexto?
As pessoas sempre me perguntam: “Você sabia que a Crispr funcionaria”? Quando você está em um experimento, você não sabe o que vai acontecer – isso é ciência. Eu tenho sido muito criticada pela mídia, mas eu preciso ser verdadeira com que eu sou enquanto cientista. Nós certamente tínhamos uma hipótese e certamente era uma ideia muito boa, como foi.
Existe a disputa de patentes e você e Emmanuelle Charpentier também acabaram por acompanhar projetos rivais para comercializar a tecnologia. Vocês todos ainda são amigos?
Se existe uma tristeza para mim sobre isso tudo – e muito disso tudo tem sido maravilhoso e entusiasmante – é que eu adoraria continuar a trabalhar cientificamente com Emmanuelle. Mas não é possível, por múltiplas razões que não eram desejáveis por ela. Eu não a culpo, de forma alguma – ela teve seus motivos e eu a respeito muito.
A mídia adora intrigas, mas nós temos uma relação muito cordial. Eu estive com ela na Espanha recentemente e ela me falou sobre os seus atuais desafios (ela está montando seu novo laboratório em Berlim). Eu espero que da parte dela, certamente da minha parte, nós respeitemos nossos trabalhos, pois afinal nós estamos no mesmo barco.
No seu livro você descreve um pesadelo no qual Hitler, usando uma máscara de porco, queria saber mais sobre a sua “fantástica tecnologia”. Você ainda tem sonhos ansiosos sobre como a CRISPR pode afetar a raça humana?
Eu tive o sonho com Hitler e tive alguns outros sonhos muito assombrosos, tipo pesadelos, o que não é comum para um adulto. Não tem ocorrido muito ultimamente, mas nos primeiros dois anos depois de eu publicar meu trabalho, esse campo de pesquisa estava se movendo tão rápido. Eu tive esse sentimento incrível de que a ciência estava andando sem qualquer consideração sobre ética e implicações sociais, e se devíamos estar preocupados com pessoas inconsequentes, nas várias partes do mundo, que poderiam usar essa tecnologia para fins nefastos.
Em 2015, você pediu uma moratória para o uso clínico da edição genética. Como você se posiciona agora com o uso da Crispr-Cas9 para edição de embriões? 
Não deve ser usado clinicamente hoje, mas no futuro possivelmente. Essa é uma grande mudança para mim. No começo, eu simplesmente pensei por que fazer isso? Então eu comecei a ouvir pessoas com doenças genéticas em sua família – isso agora está acontecendo todos os dias para mim. Muitas pessoas me enviam fotos de seus filhos. Tem um caso, que não consigo parar de pensar, que me foi enviado nos últimos 10 dias. Uma mãe que teve seu filho diagnosticado com uma doença neurodegenerativa, causada por uma mutação genética rara. Ela me enviou uma foto desse menino. Um pequeno bebê adorável, carequinha, tão fofo. Eu tenho um filho e meu coração se partiu.
O que você sente como mãe? Você vê seu bebê e ele é lindo, ele é perfeito e você sabe que ele vai sofrer com essa doença terrível e não há nada que você possa fazer sobre isso. É horrível. Ser exposta a essas situações, conhecendo essas pessoas, não é mais uma coisa abstrata, é muito pessoal. E aí você pensa, se existe uma forma de ajudar essas pessoas, nós devemos fazê-lo. Seria errado não ajudar.
E sobre a possibilidade de bebês planejados? 
Muitas coisas vão nos mostrar se a tecnologia é segura e eficaz, se existem alternativas que seriam igualmente eficazes que devemos considerar, e quais são as implicações sociais de permitir a edição de genes. Será que as pessoas vão querer uma criança de olhos azuis, que terá 1.90 m de altura e assim por diante? Queremos realmente chegar a esse ponto? Você faria coisas que não são medicamente necessárias, mas apenas caprichos, para algumas pessoas? São perguntas difíceis. Há muitas áreas cinzentas.
Você está preocupada com os cortes de verba para a ciência, incluídos no orçamento do NIH (National Institutes of Health)?
Estou muito preocupada. Verba para a ciência não é um jogo político de futebol, mas é de fato menos investimento para uma descoberta, o dinheiro necessário para custear um passo crítico para encontrarmos a cura do Alzheimer ou do câncer.
Pesquisadores que atualmente estão trabalhando em projetos que visam a melhoria de diversos aspectos da nossa agricultura, meio ambiente e saúde podem ser forçados a abandonar seus trabalhos. O resultado é que as pessoas não receberão os tratamentos médicos que precisam, nossos esforços para alimentar nossa crescente população serão ainda maiores, bem como a administração das mudanças climáticas será inviável.
A longo prazo, o próprio papel da ciência fundamental como meio para melhorar nossa sociedade pode ser questionado. A história e todas as evidências apontam para o fato de que, quando inspiramos e apoiamos nossa comunidade científica, avançamos nosso modo de vida e prosperamos.
Você se incomodou quando Trump postou no Twitter: “Se U.C. Berkeley não permite a liberdade de expressão e pratica a violência em pessoas inocentes que têm um ponto de vista diferente, NENHUM FUNDO FEDERAL para eles? ” – em resposta a um discurso de extrema-direita que foi cancelado devido a protestos violentos no campus?
Sim. Foi um tweet confuso, uma vez que a universidade estava claramente empenhada em garantir que o evento prosseguisse de forma segura e os direitos da primeira alteração (na Constituição americana) fossem suportados. Poucos esperavam que as terríveis ações de alguns fossem motivo para uma ação, vinda do mais alto cargo do país, de privar mais de 38 mil alunos de acesso a educação.
Em Davos, quando você compartilhou o prêmio Breakthrough de 3 milhões de dólares, você foi incluída na lista das 100 mais influentes pessoas no mundo pela revista Time. Você ainda está motivada para liderar um laboratório?
Ontem eu estava me aprontando para ir a um jantar muito chique. Eu já estava apropriadamente vestida, com minha maquiagem feita e cabelos arrumados, mas eu queria falar com um pós-doutorando sobre um experimento no qual ele está trabalhando. Então eu mandei uma mensagem para termos uma conversa por Skype. Eram 8 horas da manhã na Califórnia, eu estava no Reino Unido, elegantemente pronta para sair, falando sobre o experimento. Isso mostra como eu sou nerd.

10 Nov 2014, Mountain View, California, USA --- Life Sciences laureates Jennifer A. Doudna (L) and Emmanuelle Charpentier (R) speak on stage during the 2nd annual Breakthrough Prize Awards at the NASA Ames Research Center in Mountain View, California November 9, 2014. REUTERS/Stephen Lam (UNITED STATES - Tags: ENTERTAINMENT SCIENCE TECHNOLOGY) --- Image by © STEPHEN LAM/Reuters/Corbis

10 Nov 2014, Mountain View, California, USA — Life Sciences laureates Jennifer A. Doudna (L) and Emmanuelle Charpentier (R) speak on stage during the 2nd annual Breakthrough Prize Awards at the NASA Ames Research Center in Mountain View, California November 9, 2014. REUTERS/Stephen Lam (UNITED STATES – Tags: ENTERTAINMENT SCIENCE TECHNOLOGY) — Image by © STEPHEN LAM/Reuters/Corbis

Fonte: The Guardian